sexta-feira, 16 de junho de 2017

Pelos Olhos

“Onde o interior e o exterior se tocam, ali se encontra o centro da alma”. (Novalis).


Desde bem pequena até o início da juventude fui várias vezes à praia: Eram Excursões com toda a família; saíamos de madrugada nos finais de ano, como muitas famílias ainda hoje fazem, alguns dias depois do natal. Já no litoral, quem me acompanhava à água era meu avô: sempre gostei mais da água do que da areia. Nadávamos, brincávamos, ele sempre me ensinou a não temer as ondas, a ficar muito atenta a seus sons, para aprender a distinguir assim os tamanhos que tinham e a pular no momento exato em que elas me atingiriam: de costas, de frente... Me ensinou a boiar sobre elas, a me agachar no mar raso e deixar que me levassem até a praia... Mas nunca tive registro visual de nenhuma imagem dessas, só tátil, auditivo.

O tempo foi passando e fui retendo assim esses momentos com o mar e a praia, pelos cheiros, sons, texturas. Até um pouco depois dos vinte anos eu ainda tinha vontade de ver com os olhos, confiava que a medicina me traria brevemente isso, que eu ainda teria muito tempo para aprender tudo de novo, que poderia finalmente conhecer visualmente tantas das imagens que quase todos que me acompanhavam pela vida já tinham visto, inclusive as imagens do mar.

A música clássica foi outra coisa que me acompanhou desde sempre, mas eu ouvia as peças sem a preocupação de quem eram os autores, depois, devagar, os ia descobrindo, associando uma coisa com outra. E assim, certo dia, sentada na sala de minha antiga casa, já na época da faculdade, ouvi o segundo movimento do Concerto número 2 de Chopin pela primeira vez, mas não sabia que era Chopin. Quem tocava ao piano era Arthur Moreira Lima. Fui ouvindo os primeiros acordes das cordas da orquestra, a suavidade da flauta acompanhada por outros sopros, depois entrou o piano com firme suavidade e comecei a pensar que aquela melodia poderia bem ser o fundo musical apropriado para alguém que aprecia visualmente o mar pela primeira vez, como eu pretendia ainda poder fazer um dia. Fui ouvindo aqueles sons cristalinos que subiam e desciam lentamente e escutando as ondas chegando mansamente à praia num dia ensolarado, as aves marinhas que eu veria, quem sabe; e quando vieram os momentos de sons mais graves, fortes, cheios de oitavas, eu me imaginei vendo ondas arrebentando implacáveis, indo e voltando furiosas de encontro às pedras. Talvez já não houvesse mais sol; Eu lá, só olhando, nem aí... E quando o movimento retornou novamente ao tema, calmo, cristalino, líquido, me imaginei descalça andando na areia molhada ao longo da praia, sentindo o mar ir e vir sobre os meus pés, enquanto ainda observava. Depois desse dia, sempre que voltava a ouvir esse movimento, essas imagens me vinham à mente; e os anos continuaram passando.

Hoje já tenho outras ideias, a obstinação por imagens visuais não me persegue mais e há muito eu não ouvia esse movimento do concerto 2 de Chopin. Até que há quase uma semana o ouvi de novo. Só nesse dia descobri que era Chopin o seu compositor, o mesmo do meu noturno preferido. Quanto mais eu ouvia, mais a música se humanizava, vertida pelos dedos Hágeis da pianista. Sentada no teatro ouvi tocar novamente os primeiros acordes e uma sensação estranha me assaltou: uma mistura das lembranças da praia da infância e das imagens visuais que minha mente havia criado ao ouvir esse movimento pela primeira vez. Eu estava ali, sentada, sabia que a pianista tocava também ali com a orquestra e o regente, mas minha mente vagava pela infância de brincadeiras e pelo início da juventude, revivendo o impacto que, eu imaginava, aquelas imagens marinhas teriam quando eu as contemplasse com os olhos pela primeira vez. E eis que, de repente, percebi que as lembranças das brincadeiras com meu avô nas praias e as imagens que eu posteriormente criara se me escapavam, literalmente, pelos olhos inundados, numa fuga impossível de conter... Deixei que a música me invadisse por completo e permiti, ainda, que aquele pranto envergonhado da presença de plateia, mas também aliviado e silencioso cumprisse seu papel: reviver a infância e ao mesmo tempo fazer sepultar as imagens que nunca vieram e também agora já não são mais esperadas.

Para completar a noite, depois estive com a pianista, Sônia Goullart, por sinal talentosíssima, e vi que suas mãos eram, para mim, espantosamente pequenas. Reouvi mentalmente O segundo movimento do concerto e uma vez mais ele se humanizava, porque agora eu sabia como eram as mãos que em parte o haviam brilhantemente executado ali, diante de mim.

Saí do concerto de alma e cara lavadas, porque naquele momento eu soube que agora estou apaziguada com relação às imagens visuais, embora de vez em quando ainda alguma tristeza pela privação total de todas elas me visite; que não vou ver o mar em um dia ensolarado, mas que isso, afinal de contas, não é tão necessário. Tenho uma amiga, Elisa, que estava comigo nesse dia e sempre diz que a arte cura; e hoje sei, por experiência própria, que ela tem razão: a arte, realmente, cura!

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Saudades De Elke

Certa vez, em uma aula de conversação de inglês há alguns anos, um professor pediu que escolhêssemos dois artistas brasileiros que queríamos conhecer e explicássemos o porquê. Escolhi Villa-Lobos e Elke Maravilha. Para o primeiro nome, indiferença total; parecia que aquele punhado de adolescentes e engenheiros nem sequer o conhecia. Para o segundo, incompreensão e risos; era como se eu houvesse dito uma bizarrice sem tamanho. Expliquei malmente os meus porquês, sem me esforçar muito, pensando que seria melhor nunca dizer-lhes que me sinto aprendendo a ser perspicaz quando leio Machado de Assis, ou que sinto prazer e vontade de dançar tango quando ouço Gardel cantar.

Sempre admirei aquela refugiada de guerra russa que chegou pequena com os pais ao meu país e aqui cresceu e se fez grande: uma artista completa, para mim igualável a Marília Pera e Ney Matogrosso, que cantava, atuava, dirigia... Uma mulher que pensava e trabalhava por um mundo muito à frente de seu tempo, que não se deixava tocar por tantos preconceitos ignominiosos que assolam a gente dos nossos dias... Uma pessoa culta, que exemplificava as coisas mais cotidianas amparada pelos grandes pensadores da humanidade e falava fluentemente mais de meia-dúzia de idiomas... Uma comunicadora de riso fácil e modos extravagantes, sim, em se tratando da persona que Elke vestia quando estava na televisão, mas de uma humildade e compaixão raras nos dias de hoje, e que quando ficava séria para falar do que necessitava seriedade, punha a calma na voz e, por consequência, a depositava também no olhar, porque aquele que é capaz de pôr a calma na voz sempre a irradia pelos olhos. Engraçado: excetuando-se meus familiares passados, atuais e vindouros, alguns grandes amigos e certos lugares onde estive, uma pessoa como Elke me inspira vontade de ver com os olhos.

Desde o constrangimento da aula de inglês, nunca comentei com ninguém, mas mantive o desejo secreto de poder conhecer Elke pessoalmente um dia, contudo, esse dia não chegaria. Foi com tristeza que recebi ontem (16/08) a notícia de sua passagem, porque uma pessoa como Elke não morre jamais: apenas passa momentaneamente para o outro lado. Infelizmente não a conheci, nem nunca tive a ideia de dizer-lhe o quanto a admirava pelas redes sociais, e agora ficou tarde.

Uma vez vi uma entrevista sua, em que lhe pediam uma frase preferida; Elke recordou uma frase do dramaturgo grego Sófocles: "O amor é invencível nas batalhas". De fato, alguém que acredita atualmente neste como seu lema de vida merece o meu respeito. Sei que, quando perceberem que a personagem desta crônica é Elke, muitos não a lerão, mas isso não importa. Um respeitável santo católico um dia também já pregou para os peixes, por isso posso fazer o mesmo em minha existência terrena e profana.

Dentre as várias acepções desta palavra tão rigorosamente lusófona que é saudade, li um dia que também se pode ter saudade daquilo ou daquele que não se conheceu. Refletindo sobre tudo o que acabo de escrever, concluo que aquilo que neste momento sinto são saudades de Elke. Que descanse, caso esteja se sentindo cansada. Que receba no céu, caso tenha ido para lá, caso o céu exista, a paz que sempre emanou para mim na terra. Até um dia, criança!...

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Algumas Palavras Àquele que Dedicou Sua Vida Às Palavras

“-Ai flores, ai flores do verde pino,/se sabedes novas do meu amigo!/Ai Deus, e u é”? (D. Dinis).

Eu ainda não tinha feito quinze anos e já começava, em 1997, mais um ano letivo no Colégio São José, o primeiro do Ensino Médio. Na véspera do início das aulas minha avó foi à reunião com o coordenador da classe, o professor Marcos, de português. Ele deu várias orientações sobre como a escola seria, o que podíamos, o que não deveríamos etc. e depois disse aos pais que, naquele ano, leríamos oito grandes clássicos da literatura luso-brasileira para a matéria dele; passou a lista. Eu já havia decidido cursar Letras na faculdade, mas ainda assim fiquei ressabiada com a novidade: será que eu daria conta?

A resposta foi “sim”. O tempo foi passando, o professor era, ou ao menos parecia enérgico, mas fui dando conta da literatura e da gramática. Até que chegou o dia da primeira prova. Ele a aplicou em separado para mim e para os demais, visto que, como eu não enxergava, quis que minha primeira prova fosse oral, na certa para medir o quanto eu sabia; e eu sabia bastante, mas o nervosismo das perguntas a serem respondidas no ato me deixou com 8,25. No entanto, foi bom, porque vencida essa resistência, Marcos conseguiu ver em mim a aluna promissora que eu tinha potencial para ser em suas matérias. Minhas notas não eram tão altas quanto eu gostaria – ele era minuciosíssimo nas correções – mas eram sempre boas.

Os meses foram se passando e ele havia se tornado um dos meus professores mais chegados, das minhas duas matérias preferidas. Meu aniversário de quinze anos caiu em um dia de aula sua. Vanessa, uma de minhas amigas já naquele tempo, foi pedir-lhe que cantassem os parabéns naquele momento, em que ele estava presente; tive uma grata surpresa, um momento de felicidade suprema. Era como se, enquanto a menina dava lugar à mulher que começava a surgir, a literatura fosse me adubando...

Às vezes, enquanto ele viajava pela literatura sem nada nas mãos, em largas passadas pela sala, como era de seu costume, sorriso largo estampado no rosto, e percebia que parecia não haver ninguém prestando atenção ao que dizia, vinha-se achegando e logo eu sentia aproximar-se o perfume que ele então usava. Naquela fileira havia quatro pares de ouvidos sempre atentos: os da Vanessa, os da Taís, os da Karina e os meus, e ele sabia disso: sentava-se na pontinha da minha mesa, virava-se de perfil para nós e continuava excursionando pela literatura, e nós o acompanhávamos. Eu já deixava, a cada aula sua, aquele lugarzinho guardado para quando ele quisesse se achegar...

Gostava de ser chamado de mestre e bem merecia sê-lo. Me recordo agora quantas e quantas vezes, eu tão menina, me chamou de “minha cara discípula”, com aquela sua formalidade tão característica! Hoje, mais do que antes, dimensiono a honra que era para mim receber dele esse epíteto. Pensando agora me vem à cabeça a singeleza com que declamava as cantigas medievais de amigo; a melancolia apaixonada com que recitava as cantigas de amor; a maneira como os personagens dos autos de Gil Vicente adquiriam vida com suas palavras; a sanha lutadora que punha nos versos dos Lusíadas de Camões; a jocosidade mordaz que emprestava aos versos de Bocage; a sacralidade sublime com que dizia os sonetos de Gregório de Matos, mesmo sendo ateu; o lirismo idílico que os versos árcades tinham nos seus lábios. A literatura se apoderava dele, ele era um templo das palavras que se tornaram arte ao longo dos séculos.

As aulas cessaram naquele ano mesmo, mas sempre mantivemos o contato. Ao fim do Ensino Médio a despedida foi difícil. Eu sentia, enquanto o estreitava timidamente naquele último dia, naqueles tempos em que a Internet ainda não havia, que perdia o mestre e o amigo. Mas não foi assim. Primeiro o telefone impediu isso, depois o e-mail e por fim o facebook. Ainda que virtualmente eu tinha aquela presença de volta, mais a do amigo agora do que a do mestre. Passaram-se os anos e a amizade se estreitava mais. Fiz Letras e ele ficou contente; fiz o Mestrado e ele estava lá na minha banca de defesa. Recusou-se a falar; disse que a emoção era tão violenta que não lhe permitiria expressar-se com palavras. Posteriormente me escreveu que eu era uma das alunas que mais lhe dava orgulho, porque academicamente o havia superado, havia chegado ao Mestrado, que ele não tinha feito. Porém, jamais senti que o superava; para mim ele era e continuaria, continuará sendo sempre o meu mestre, meu caro e querido mestre.

Quis o destino que eu não estivesse em Limeira quando recebi a mais temível das notícias: disseram-me que ele havia partido voluntariamente para uma das barcas de Gil Vicente. Fora por vontade própria para o lado de Dante, de Virgílio, de Camões...

Jamais esperei viver para escrever esta crônica do adeus a um dos meus mais profundos iniciadores naquela que se tornaria a vocação de minha vida: as letras; esta crônica que ele nunca poderá ler. E como gostava de ler as minhas crônicas!... Dizia que eu escrevia de forma lírica. É com o coração sinceramente dilacerado que faço essas profundas rememorações.

Marcos, meu caro mestre, meu querido amigo: que você finalmente tenha encontrado a paz que procurava; que cessem por completo os seus tormentos; que você tenha, muito mais do que o descanso do corpo, o refrigério da alma! E não se esqueça de que o que combinamos continua de pé: um dia nos vemos, felizes, na Barca da Glória!

“Ó Capitão! meu Capitão! Finda é a temível jornada,/Vencida cada tormenta, a busca foi laureada./O porto é ali, os sinos ouvi, exulta o povo inteiro,/Com o olhar na quilha estanque do vaso ousado e austero./Mas ó coração, coração!/O sangue mancha o navio,/No convés, meu Capitão/Vai caído, morto e frio.//Ó Capitão! meu Capitão! Ergue-te ao dobre dos sinos;/Por ti se agita o pendão e os clarins tocam teus hinos./Por ti buquês, guirlandas... Multidões as praias lotam,/Teu nome é o que elas clamam; para ti os olhos voltam,/Capitão, querido pai,/Dormes no braço macio.../É meu sonho que ao convés/Vais caído, morto e frio.//Ah! meu Capitão não fala, foi do lábio o sopro expulso,/Meu calor meu pai não sente, já não tem vontade ou pulso./Da nau ancorada e ilesa, a jornada é concluída./E lá vem ela em triunfo da viagem antes temida./Povo, exulta! Sino, dobra!/Mas meu passo é tão sombrio.../No convés meu Capitão/Vai caído, morto e frio”. (Walt Whitman).

domingo, 13 de setembro de 2015

O Submundo Da Torre Eifel

Diante de toda a desumana indignidade com a qual venho percebendo que estão sendo tratados os refugiados, predominantemente sírios, em sua busca desesperada por uma vida melhor no Velho Continente – que, com poucas ressalvas, parece querer ignorar sumariamente as dívidas históricas que um dia contraiu sem perguntar com quem -, republico hoje (13/09/15) esta crônica que escrevi faz alguns anos, quando pela primeira vez tive contato, ainda que superficial, com o drama dos refugiados que buscam a Europa. Reflitamos um pouco mais.

Nas últimas semanas, enlevada ainda por tudo de lindo que vi durante o tempo em que estive na Europa até mais ou menos quinze dias atrás, tenho escrito crônicas contando episódios que, literalmente, me maravilharam.

Porém, contrariamente àquilo que muitas vezes se imagina, vi, no Velho Continente, tão velho quanto a América que nós mesmos desconhecemos, muitos problemas que, a julgar pela imagem que se tem dos países mais abastados, seriam, erroneamente, problemas exclusivos dos países a que se denomina “em desenvolvimento”.

Quando eu ainda cursava o Ensino Médio, há nem tantos anos assim, a União Européia começava a dar fortes mostras de consolidação, que se expandiram com o passar do tempo. O que ouvíamos e líamos então era que, depois de um período de adaptação difícil dos países mais pobres do bloco às novas condições de integração econômica e social, haveria um equilíbrio bastante satisfatório. Porém, não foi isso o que constatei, passado mais ou menos um decênio, na maioria dos países que visitei: Portugal, a Espanha, a França e a Itália me puseram problemas bem brasileiros diante dos olhos – dois países mais pobres e dois mais abastados: mendicância, desemprego, venda de mercadorias piratas, salários-mínimos insuficientes, acampamentos miseráveis onde imigrantes ciganos levam vidas muito similares aquelas que costumamos ver retratadas nas nossas praças, viadutos e jornais. A diferença é que o uso de armas, brancas ou de fogo, ainda não acompanha as ações e reações desses deserdados do desenvolvimento; seu trunfo é a hagilidade coletiva, principalmente das crianças menores de idade, que, como aqui, serão presas por pouco tempo e logo estarão novamente nas ruas praticando o delito – único trabalho que conhecem. Não estou sendo sentimental, ao contrário do que se possa pensar. Segundo os nossos guias, elas chamam mesmo isso de trabalho, assim como os ciganos em geral, e este é sim o único “trabalho” que lhes cabe, e que nós, turistas e guias turísticos, tentamos evitar que ocorra a todo custo, afinal de contas, ninguém em sã consciência vai deixar-se roubar, não é?

Espanhóis e portugueses me atestaram com igual lamento as desastrosas conseqüências da adoção do Euro nessas realidades econômicas. Lá, como aqui, todos esses fragmentos cotidianos e depoimentos penalizam. Mas o episódio que me leva a escrever esta crônica foi um episódio que vivi na opulência iluminada da Torre Eifel.

O que mais chamava a atenção dos turistas que podiam olhar era como aquela construção é majestosa, grandiosa, como grandicíssima parte dos monumentos na França. O jogo de luzes que à noite torna a torre dourada, camuflando sua verdadeira coloração marrom diurna, parecia hipnotizà-los. Mas para mim, que via de outra maneira e achava tudo aquilo muito monótono, o que atraiu minha atenção foi a realidade circundante: imigrantes africanos, bastante altos, numerosos e extremamente simpáticos nos cercavam, apresentando mercadorias ilegais, que gerariam multas altíssimas, para eles e para nós, se a polícia aparecesse. Já havíamos sido alertados da presença deles e das potenciais conseqüências dessas compras se houvesse flagrante, mas chegar e estar de repente no meio deles nos faz sentir na 25 de Março. Os franceses, de modo geral, comunicam-se apenas em francês, falando inglês bem poucas vezes e nem sempre com fisionomias receptivas, ao menos pelo que presenciei; aqueles imigrantes, pelo contrário, falavam uma espécie de espanhol misturada com português, arranhada com os “erres” pronunciadíssimos do francês. Conheciam Pelé, o presidente Lula, sorriam e queriam nos fazer sentir em casa. E falariam outras línguas, se outros fossem os turistas a chegar para ver a torre e os outros monumentos. A presença deles era recorrente. Precisavam desesperadamente vender, mas nos tratavam com tanta hospitalidade para issso... Quem sabe, a hospitalidade que eles mesmos não receberam do país que os colonizou. Vejam-se as expulsões de ciganos da Romênia e Bulgária, acampados em território francês, que temos acompanhado há mais de um mês, e cujos acampamentos eu mesma vi à entrada de Paris, isso para não mencionar a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos.

Não escrevo como quem se acha dona da verdade, só relato o que vi. Mas a única imagem que temos aqui antes de chegar a Paris é a de cidade-luz. E aqueles que regressam nunca falam sobre a França que se esconde nos porões da própria França; nunca contam sobre a Europa que se esconde nos porões da própria Europa.

Ter podido estar naqueles países foi a realização de um sonho acalentado há muito tempo. Para quem respira literatura, como eu, é indescritível poder estar no lugar a que se convencionou chamar de “o berço da Civilização Ocidental”. Mas hoje, gostaria de dividir com vocês esse outro lado. Não estou querendo dizer que não se deva ir a Europa. Eu mesma, se pudesse, voltaria, ainda há tantas coisas que não pude ver... Só gostaria de convidá-los a visitar a Europa, ou observar a Europa, lembrando que esta moeda também tem dois lados. Enfim, só queria dizer que viajar pela Europa e por dentro doBrasil são igualmente passíveis de revelar sublimidades que jamais imaginamos e indignidades das quais nem desconfiamos. Ou seja, em nenhum dos dois lados há unanimidades absolutas. Baudelaire costumava dizer que o homem contemporâneo precisaria aprender a “abrir alas à beleza da feiúra”. Depois dessa viagem, terminei de constatar que ainda precisamos ir um pouco além e abrir alas também à feiúra da beleza.


Limeira, quarta-feira, 29 de setembro de 2010.

[Texto publicado originalmente no blog jornalistas.blog.br, em 01/10/2010].

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Através Das Janelas Do Mundo



Desde criança sempre tive, por natureza, um carinho todo especial pelos estrangeiros. Logo que os ouvia falar línguas distintas da minha, eu já tinha a atenção atraída para eles, fossem de onde fossem, fosse qual fosse o idioma que falassem. Ouvi-los contar os costumes de seus países, suas recordações, suas experiências de vida sempre foi para mim motivo de júbilo atento; sempre foi para mim oportunidade escancarada de aprender alguma coisa nova. Toda vez que ouço um estrangeiro falar é como se, de par em par, devagarinho, ele me fosse abrindo uma janela do mundo...

Comecei a me dar conta desse fascínio quando, com uns dez anos, estudava em uma escola que recebeu três crianças que viviam em um circo que tinha chegado à nossa cidade; três brasileirinhos, mas que sabiam falar espanhol. Tinham dificuldades em várias disciplinas, acho que em grande medida devidas ao fato de passarem uma semana, dez dias em uma escola e logo já precisarem levantar acampamento e partir de novo. Mas falavam espanhol, principalmente o menino: baixinho, franzino, dono de uma vozinha aguda com sotaque de paulistano da Mooca, mas falava espanhol... Me recordo que a professora nos deixou fazer-lhes perguntas, todas as que quiséssemos e que eles quisessem responder, e eu só queria saber em que momento o Luís Antônio falaria alguma coisa em espanhol; esse era o nome dele. E acabou falando mesmo.

Depois disso eu tive amigos estrangeiros, professores estrangeiros, inclusive alguns desses mestres se tornaram grandes amigos. O marido da professora brasileira de italiano contava, alegre, como era a infância fria mas saudosa em Trento; meu professor bavarês de alemão contava, aterrado, do medo imenso que tinha do papai-noel; o professor chileno de espanhol descrevia, pensativo, as paisagens dos Andes; o professor britânico de inglês relatava, satisfeito, a rigidez benéfica das escolas de sua infância; a professora irlandesa de inglês dizia, irritada, como detestava as aulas de sapateado irlandês que a mãe a obrigava a fazer; a professora uruguaia de espanhol ainda hoje me fala, com ternura, das brincadeiras na escola e no casarão antigo da avó. Isso para ficar apenas no tema infância.

Além do mais, acho que viajar é o maior e melhor investimento que uma pessoa pode fazer em toda sua vida. Ficar impregnado do chão, dos ruídos, dos cheiros, das vozes, da aura de outros lugares do mundo que não o país onde a gente nasceu é uma dádiva que não tem preço e que não nos pode ser tirada jamais.

Tudo isso para encontrar um meio de dizer que hoje estou dilacerada. Dilacerada pela impotência. Dilacerada pela imagem do mmenino sírio de três anos morto afogado, com o rosto sufocado sobre a areia de uma praia na Turquia, que correu mundo nessses últimos dois dias. Dilacerada por pensar nesse pai que, torturado em Kobane pelo Isis, que não é estado e jamais soube o que é ser islâmico, tentou fugir com a família para o Canadá, para ficar junto do irmão, e teve o pedido de asilo negado; esse pai que pagou por duas vezes quantias absurdas para fazer com os atravessadores desumanos e inescrupulosos que traficam pessoas essa infausta rota do Mediterrâneo e foi boicotado; esse pai que conseguiu viajar com a mulher e dois filhos pequenos, finalmente, mas que viu sua vida despedaçada quando o atravessador pulou do barco na Turquia e os abandonou à própria sorte, ou antes, à própria falta de sorte. O barco virou; a mulher e os filhos lhe escaparam por entre os dedos a pouco mais de quarenta quilômetros da fronteira com a Grécia; apenas ele sobreviveu. Sobreviveu ao Isis para ter a família fria e grosseiramente abalroada por esses verdadeiros cemitérios submarinos que estão se tornando o Mediterrâneo, o Egeu, apenas duas das tantas rotas pelas quais esses imigrantes tentam desesperadamente escapulir à procura de um pouco de paz... Sírios, afegãos, etíopes, eritreus, haitianos, bolivianos e tantos outros para os quais o mundo parece não se importar em fechar os olhos. Agora o Canadá oferece a este pai abrigo; agora que seu único desejo é voltar à torturada e torturante Síria, para enterrar a própria família. E essa é apenas uma das grandes tragédias humanas do nosso tempo que chegam ao nosso conhecimento.

Pode parecer exagero, mas escrevo para não explodir, para não sufocar em aflição. O que estamos fazendo? Sim, estamos, os que estão perto e os que estão longe desse êxodo forçado, porque calar e omitir-se também é compactuar, também é ser cúmplice. Estamos multando, pondo grades nas janelas de trens, proibindo-os de circular, fazendo devoluções como se de mercadoria indesejada se tratasse, expremendo gente sobre gente em caminhões, vans, porões de barcos, até à literal asfixia; estamos construindo muros e cercas, estamos nos escondendo atrás da desculpa do “roubo” dos empregos... Ah, também tem aquela da ameaça islâmica à tradição cristã... Ora, façam-me o favor! Será que é tão difícil lembrar que somos todos humanos, de carne, osso e sangue? Que todos sentimos, que todos desejamos, que todos buscamos, que cada um de nós recebeu, do Deus em que acredita, se é que acredita, o privilégio de existir?

Pelo amor de Deus! Se cada estrangeiro é uma janela do mundo que se abre, o que estamos fazendo? Estilhaçando a pedradas inclementes uma por uma dessas janelas todas? Quando encontrei os primeiros refugiados africanos de que tive conhecimento, certa vez, em uma excursão, quando os vi vendendo lembranças na informalidade e correndo com as mercadorias às costas e a polícia em seus calcanhares, não pude e nem soube supor que eram apenas o começo dessa onda insana de indignidade que assola o mundo. Tantas coisas eu espreitei por aquelas janelinhas do mundo que eram esses negros altos, com jeitão todos de maratonistas quenianos, que muitas vezes me trataram melhor do que os moradores “originais” que conheci em alguns lugares... Espreitei tantas coisas, pensei que tinha visto tanto e vi em realidade tão pouco.

Já faz tempo que essa indiferença com a vida vem me incomodando, dia a dia, na tv, redes sociais etc., mas hoje esse incômodo beira as raias do desespero. Há pouco vi uma jornalista conclamando que cada um, onde estivesse, dentro de sua profissão, fizesse o que pudesse para pressionar o mundo por atitudes mais humanas e mais efetivas. Minha profissão são as palavras; minha vida são as palavras! Brasileiras e estrangeiras; todas as palavras. Então, humildemente, escrevo.

Escrevo e aproveito para agradecer: seu Lívio (in memoriam), Alejandro, Jose, Manuel, Paco, Pedro, Mario, Lucas, Luis, aos Antonios, Jesús, às Carmens que já conheci, Fernando, Liliana, Paloma, Monika, Axel, Steve, Emma, Veit, Elisa, Alicia, Reyes, Helena, Alexandra, Cristina, Raul, Beatriz, Sara, Ruben, Susana, Ana, Javier, Enrico... A todos vocês e a todos os estrangeiros, nomeados ou não aqui, que me abriram e abrirão um dia as janelas do mundo, porque jamais me cansarei de espreitar entre elas, obrigada por tudo, obrigada por tanto! Obrigada por me terem ensinado, acima de tudo, a ser mais gente!... Jamais os esquecerei por isso.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Dica De Leitura: O Romance De Tristão E Isolda

“Senhores, os bons trovadores de antanho, Béroul e Thomas, e monsenhor Eilhart e mestre Gottfried, narram este conto para todos os que amam, não
para os outros. Transmitem-vos por meu intermédio sua saudação. Cumprimentam os que são sonhadores e os que são felizes, os descontentes e os apaixonados,
os que estão alegres e os que estão perturbados, todos os amantes. Que possam encontrar aqui consolo contra a inconstância, contra a injustiça, contra
o despeito, contra a aflição, contra todos os males de amor”! (J. Bédier).


Contada e recontada muitas vezes, a lenda medieval do romance entre sir Tristão de Loonois e Isolda, a Loura, princesa irlandesa que viria a ser a rainha das Cornualhas – onde se passa a história -, tem seus primeiros registros poéticos escritos datados no século X, por vários trovadores anglo-franceses, sendo efetivamente desconhecida sua real autoria. Nessa época as línguas vernáculas europeias estavam em formação, vigorando os chamados romances, e as fronteiras entre os países ainda não estavam bem definidas, sendo muito comuns as guerras ensejadas por disputas territoriais entre os então vários reinados existentes.

A versão ora em questão foi composta pelo escritor, filólogo e estudioso da literatura francesa medieval Joseph Bédier (1864-1938), editada no Brasil pela Martins Fontes. A atmosfera medieval é mantida e mostrada de maneira relevante, a cada momento revelando os matizes das cantigas de amigo, que primeiro devem tê-la registrado, os cavaleiros com suas lorigas, elmos, lanças, espadas, clavas e flechas e as damas com seus vestidos finos e ricamente bordados e adornados de pedrarias são presença constante. Os servos, mensageiros e traidores fazem, também, por sua vez, a história desenrolar-se.

Ainda jovem, o cavaleiro Tristão é raptado por mercadores irlandeses e deixado nas praias das Cornualhas, terras do rei Marc, seu tio; no entanto, por bastante tempo, ambos desconhecem esse parentesco, embora se queiram com ternura infinita desde o primeiro momento em que se encontram. Certo dia chega o gigante Morholt, da Irlanda, para cobrar impostos ao rei Marc. Esse pagamento consistia em que lhe fossem entregues jovens do reino, a não ser que alguém o vencesse em combate. Todos os barões de Marc regeitam o combate, a não ser Tristão, que derrota o gigante, mas fica mortalmente ferido e pede ao tio que o deixe morrer ao mar, em uma nau sem velas, acompanhado apenas por sua harpa, segundo o costume antigo que se pode já depreender da leitura do épico anônimo Bewolf. Milagrosamente, o mar o conduz às terras irlandesas. Detentoras dos antigos conhecimentos celtas sobre magia e poções, perfeitamente familiares àqueles que sejam leitores vorazes das proezas ocorridas no universo mágico e místico de Avalon, Isolda, a loura, e a rainha, sua mãe, curam Tristão dos ferimentos e ele volta para o tio sem ser reconhecido como o assassino do Morholt.

O rei Marc deseja deixar todo seu reinado ao sobrinho. No entanto, quatro barões traidores, que se encarregarão de tecer intrigas durante o transcurso de todo o enredo, o induzem a casar-se. Marc, então, os informa de que se casará apenas com a dona do fio de cabelo de ouro que os pássaros lhe trouxeram. Lembrando-se de Isolda, a loura, Tristão, arriscando-se a ser reconhecido e morto, regressa à Irlanda para buscá-la, a fim de que se case com o rei. Porém, o destino os atraiçoa. A mãe de Isolda entrega a sua serva e companheira, Brangien, a fiel, um filtro que deve ser servido apenas a Isolda e ao rei Marc, na noite de núpcias, para que o bebam juntos, pois os que dele se servirem haverão de amar-se com todos os sentidos e pensamentos, na vida e na morte. Por engano, Isolda e Tristão o bebem juntos para aplacar o calor e, a partir desse momento, passam a amar-se com todos os seus sentidos e pensamentos e se entregam um ao outro desesperadamente, até o fim da viagem.

Chegados às Cornualhas, Isolda casa-se com o rei Marc, tornando-se a rainha de seu país, mas os amantes não podem deixar-se, até que são flagrados por ele que, amando Isolda verdadeiramente e ferido pela deslealdade das duas pessoas a quem mais queria no mundo, decide matá-los sem julgamento, na fogueira, embora Tristão jure jamais ter amado Isolda com amor culpável e vice-versa. Tristão consegue fugir e é salvo por Deus. Tomado pela cólera, Marc considera que a morte rápida é pouco para punir Isolda e decide entregá-la a seus leprosos, para que seja de todos eles. Ao ver a turba que a conduz, Tristão consegue matar seu captor, reaver a rainha e fugir com ela para a floresta densa, onde se escondem e se amam por muito tempo... Um amor, uma cabana...

Descobertos pelo rei, seu precioso sobrinho e a amada de seu coração são perdoados. Tristão entrega-lhe Isolda e parte, levando seu anel de jaspe verde e deixando-lhe seu leal cão, Husdent.

Forçada pelos barões, Isolda deve fazer o juramento do ferro em brasa e manda mensagem a Tristão para que venha em seu socorro vestido de peregrino. Chegados à charneca branca onde o juramento aconteceria, Isolda ordena que o peregrino miserável à margem do rio venha buscá-la e a tome nos braços, para chegar ao outro lado sem enlamear-se. Tristão a obedece. Então, diante dos reis Marc e Arthur, Isolda jura que nenhum homem jamais a teve nos braços, a não ser seu marido, Marc, e o peregrino miserável estendido na areia diante de todos os presentes. Proferindo esse juramento, toma o ferro em brasa e permanece com as mãos ilesas depois de soltá-lo. Os barões se convencem de sua inocência e Tristão parte para a Bretanha.

Lá chegando, vence uma guerra que já durava anos e recebe como recompensa a mão da filha do rei, Isolda, das brancas mãos. Julgando-se esquecido por Isolda, a loura, aceita o casamento, mas é incapaz de consumá-lo, uma vez que não consegue deixar de pensar na amada. Torturado, volta às Cornualhas e, encoberto por variados estratagemas, consegue rever Isolda, a loura, e amá-la pela última vez. Regressando à Bretanha, é ferido mortalmente em combate. Ao saber disso, Isolda, a loura, foge pelos mares para revê-lo e curá-lo. Contudo, consumida pela vingança, Isolda, das brancas mãos, diz a Tristão que a nau que retorna tem uma vela negra enfunada. Esse era o sinal combinado caso Isolda, a loura, não concordasse em vir vê-lo. Fulminado pelo desgosto, Tristão expira. Ao chegar e vê-lo morto, Isolda, a loura, cola-se a ele, e morre também, enquanto Isolda, das brancas mãos, se consome em agonia pelo mal que causara. Ao saber da desventura dos amantes, o rei Marc vai buscar seus corpos e os enterra separados por uma capela. No entanto, à noite, cresce do túmulo de Tristão um espinheiro verde que sobe pela igrejinha até descansar no túmulo de Isolda, a loura. Por três vezes é cortado e por três vezes renasce, cresce e volta para o regaço da rainha. Ao ter conhecimento disso, o rei Marc ordena que os amantes sejam deixados em paz.

O romance de Tristão e Isolda foi a fonte em que beberam vários autores e contadores de outras histórias de amor e morte, como Romeu e Julieta, de Shakespeare e a história real de Pedro, rei de Portugal e de Inês de Castro, coroada sua rainha depois de morta, perpetuada nos Lusíadas, de Camões. Muito mais do que o amor e a morte, os grandes dons que nos oferece o romance de Tristão e Isolda são a perseverança e a fé.

Dica De Leitura: Fábulas Italianas

traiçoeiro, algo perfeitamente compreensível, visto que, no tempo em que presumidamente se passaram as fábulas, a Europa se encontrava sob o domínio do Império Turco Otomano. Outro mister a que se prestam algumas dessas fábulas é a explicação pelo mito, como já faziam os antigos gregos.

Algo importante ainda a ser destacado são os componentes sagrado e profano, inerentes ao ser-italiano. Da mesma forma como estão presentes nessas fábulas elementos pagãos encontráveis de Norte a Sul da Europa, como fadas, bruxas, monstros, gigantes e ogros, o componente cristão também tem lugar na constituição da identidade italiana, de maneira simultânea, como já era de se esperar: na terra do Papa nasceram fábulas com personagens como Jesus, Maria, São João e São Pedro, tendo este último um lugar especial nas historietas: ora Pedro é irritadiço e gabola, ora dá demonstrações incontestes de fé.

A obra é recomendável principalmente aos leitores adultos que ainda sabem onde encontrar a criança que habita a cada um de nós.