sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: El General Artigas

Tendo chegado ao fim a viagem propriamente dita, com os lugares, paisagens, peculiaridades, pessoas que conheci no Uruguai, quase tudo já devidamente descrito e bem-guardado, devo começar a me despedir. No entanto, esta não será uma despedida breve. Minhas últimas três crônicas serão bastante pessoais: duas sobre como se originou e vem desenvolvendo esse pequeno e aprazível país e a última sobre aquilo que percebi que o Uruguai tem de Brasil, porque é muito provável e possível, quase inevitável, que um brasileiro que vá até lá se sinta em casa.

Iniciando então o fechamento desta série sobre o “Paisito”, me cabe falar a respeito de um personagem tratado no Uruguai com solenidade a um só tempo terna e reverente, cuja história é um mosaico mesclado de Europa e Banda Oriental: o general Artigas, prócer da pátria. O Uruguai laico, liberal e vanguardista de hoje, em certa medida, deve muito às ideias, por que não dizer, revolucionárias de seu herói nacional.

José Gervasio Artigas nasceu em Montevidéu, em 1764, proveniente de uma fidalga família espanhola. Nesse tempo, as terras a Leste do Rio Uruguai – Banda Oriental -, eram disputadas pelos impérios espanhol e português, por conta dos imensos rebanhos de gado e cavalos selvagens existentes no pampa. Ao redor de Montevidéu alargava-se a vasta campanha plana e verdejante. Conta-se que, lá pelos catorze anos, Artigas deixou sua casa na cidadela, reaparecendo anos depois, liderando índios charruas, minuanos e guaranis, bem como desertores espanhóis e portugueses e escravos fugidos. Todos esses eram os seguidores multiétnicos com os quais passou a conviver, chamados, em espanhol, de gauchos, e de gaúchos em português.

Aos trinta e três anos entrou para o serviço da Coroa Espanhola. Naquele país, em 1808, consolidando seu plano de tomar posse da Europa, Napoleão Bonaparte invade a Espanha, depõe o rei Carlos IV e entrega o trono usurpado a seu irmão José Bonaparte, enquanto a família real portuguesa se instala no Brasil, fugindo a destino similar.O caos instaurado na Espanha abre brecha às lutas de independência de suas colônias na América. Os atuais Paraguai, Peru, Chile, Argentina, Uruguai e fatias do que hoje é o Rio Grande do Sul declaram independência em 1810, formando a Junta de Buenos Aires. O governo de Montevidéu declara lealdade à Espanha.

Em 1811 Artigas deserta do exército espanhol e se une aos revolucionários com seu próprio exército gaucho. De seu cavalo, o general reunia combatentes por onde passava. Combatentes e suas famílias. Aquela nação nômade que se formava seguia seu líder por onde quer que ele fosse. Trajando endumentária gaucha, o general de olhos esverdeados, expressão sisuda e rosto bronzeado de sol pregava a liberdade civil e religiosa e a cessão de terras aos índios. As formações espanholas, estabelecidas de maneira lenta e disciplinada, eram sorrateiramente atacadas e debeladas graças à ligeireza das montarias das tropas artiguistas. Ainda naquele ano Montevidéu fica prestes a ruir na batalha de Las Piedras.

Sem saída, o governo da cidadela busca a ajuda do reino de Portugal, seu antigo inimigo. Carlota Joaquina, princesa dos reinos de Brasil, Portugal e Algarves e filha do deposto rei espanhol Carlos IV, mais do que de pressa faz atender ao apelo do governo de Montevidéu, com a intenção oculta de anexar a Banda Oriental aos territórios portugueses. Artigas foge com cerca de 80% daquela que um dia seria a população uruguaia para a atual província argentina de Entre-Rios, conseguindo tomar Montevidéu em 1814. Encerrado o domínio espanhol na região do Prata, a Junta de Buenos Aires tenta anexar a Banda Oriental à União Argentina, sendo impedida pelo exército de Artigas, que, combatendo seus antigos aliados portenhos, passa a ser novamente caçado por espanhóis e portugueses, além dos argentinos. Esse cerco dura até 1821, quando Artigas exila-se no Paraguai, até sua morte em 1850. O território uruguaio é anexado aos reinos de Portugal, Brasil e Algarves sob o nome de Província Cisplatina e, após a independência do Brasil, torna-se parte desse império.

Porém, o ideal do novo país que teria lugar na antiga Banda Oriental já tinha sido semeado. Em 19 de abril de 1825, um grupo liderado por ex-seguidores de Artigas – já exilado -, dentre eles Fructuoso Rivera, Manuel Oribe e Juan Antonio Lavalleja, e conhecido como os Trinta E Três Orientais, chega à cidade de Florida. Não eram apenas orientais nem apenas trinta e três, mas esse número corresponde ao grau supremo da Maçonaria e é oficialmente aceito no país. Em 25 de agosto do mesmo ano a Assembleia Constituinte se reúne e declara a independência da República Oriental do Uruguai, depositando aos pés daquela que seria mais tarde chamada Virgem Dos Trinta E Três Orientais, além da bandeira tricolor com três listras horizontais: vermelha, azul e branca – cores já disseminadas nos tempos de Artigas -, os rumos do novo país do qual ela seria um dia padroeira. Em 1828 esse ato ganha o devido reconhecimento por parte de brasileiros e argentinos e a história uruguaia ganha novos rumos.

Quando estive detidamente diante do monumento erigido a Artigas, ventava forte e chovia gelado na antiga cidadela que se fez grande. Ainda assim, a atmosfera solene mas não pesada reinava na praça. Do alto de seu cavalo alto, era como se o velho gaucho nos observasse a todos. A água tornava o piso escorregadio e liso, mas ninguém resistiria à oportunidade de chegar um pouquinho mais perto do prócer, até porque a chuva de Montevidéu não devia ser, para ele, nenhuma novidade. Ninguém resistiria e, claro, eu também não resisti.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Colonia Del Sacramento

Neste estágio da viagem conhecemos lugares bastante distintos dos que havíamos visto até então. Viajando agora pelo Oeste do país se nos apresentou a produção de frutas, verduras, leite, mel... Estão presentes ali os vilarejos e em bem menor número são as árvores, visão oposta à que tivemos quando fomos rumo ao departamento de Maldonado. No entanto, chama a atenção a presença abundante, em determinado trecho do caminho, das palmeiras canarienses.

Trafegando pela estrada plana e serpenteante vamos descobrindo que está presente com grande força nessa região a influência dos Imigrantes. A chamada Guerra Grande (1839-1851), já visitada em uma crônica anterior, teve papel decisivo nessa história. Com o seu fim e o país em falência econômica generalizada, imigrantes europeus (suíços, piamonteses, espanhóis...) chegavam trazendo suas ferramentas e conhecimentos novos sobre a terra e o gado, que fizeram o Uruguai, já livre da guerra civil, começar novamente a prosperar. Era esse, em parte, o cenário que nos aguardava. Porém, a história do departamento de Colonia, onde logo chegamos, bem como de sua capital, a cidadezinha antiga de Colonia Del Sacramento, começa em um período bem mais anterior. E quando digo antiga não me refiro somente ao aspecto arquitetônico antigo do local; digo antiga também para explicitar que, em Colonia Del Sacramento, tudo recende a antiguidade, como se o tempo lá não passasse.

A cidade então chamada Colônia Do Santíssimo Sacramento, na época uma possessão portuguesa em meio às terras da coroa espanhola, foi a primeira cidade do país que hoje se denomina República Oriental do Uruguai. Então temos lá a primeira igreja do Uruguai, o primeiro colégio do Uruguai e assim por diante. Fundada em 1680 por Manuel Lobo – governador da Capitania Real do Rio de Janeiro -, a intenção portuguesa com o estabelecimento desta cidade dentro dos domínios espanhóis era, além do componente bélico, minerar e traficar por intermédio do Rio da Prata. Durante quase cem anos Colonia Del Sacramento foi tomada pelas armas pelos espanhóis, recuperada diplomaticamente pelos portugueses, retomada pelas armas pelos espanhóis etc., etc., etc., assim sucessivamente. Em 1777, torna-se definitivamente possessão espanhola, como preconizou o Tratado de Badajoz. Essa alternância luso-espanhola no poder deixou uma herança visível: as casas espanholas, de traços retilíneos como os de um tabuleiro de xadrez, se misturam às portuguesas, que seguem o relevo do lugar. Esse desenho peculiar, aliado às ruas de pedras portuguesas, à semelhança da cidade brasileira de Paraty, ajudam a dar-lhe o ar de tempos antigos.

E novamente em Colonia Del Sacramento, na década de 70 do século XX, o impulso econômico argentino se fez sentir no Uruguai, como já retratado em outras ocasiões aqui mesmo nestas crônicas. Até então, passado o furor da disputa pelo poder entre espanhóis e portugueses e afastadas de vez ambas as metrópoles com a independência do país e das demais colônias luso-espanholas, a cidade, depois da desativação do complexo turístico de Real de San Carlos – com a proibição nacional das touradas em 1912, foi se tornando uma localidade perigosa e desvalorizada, conhecida como el bajo. Situada a apenas 45 quilômetros de Buenos Aires, começou a ser gradualmente recuperada pelos argentinos por meio do turismo. Em 1995 foi declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.

Em Colonia Del Sacramento me aconteceu algo inusitado. Feito o passeio pela cidade, almoçamos. Então eu quis voltar à basílica, rezar com mais tranquilidade e comprar algumas lembranças. A questão era: onde está a igreja mesmo? E anda que anda e nada de igreja. O tempo corria impiedoso, tínhamos quinze minutos antes que o ônibus partisse no horário combinado. Íamos desistir quando ouvi um sino. Estaquei onde estava, apontei a direção com a mão direita e disse à minha amiga: “Aqui”! Sem que ela tivesse certeza visual de que íamos na direção correta, seguimos o som do sino; tínhamos pouco tempo e não muita escolha. E, depois de um pouco de tempo de quase-corrida, efetivamente, lá estava a igreja. Foi uma emoção diferente entrar com os uruguaios celebrando a missa, cantando. Aquelas preces em espanhol me inundaram por completo e entendi que haveria tempo para tudo. Deus havia feito soar o sino na hora exata. Nos permitiu chegar à igreja guiadas pelo som. Ao abrir-se a porta, os uruguaios cantavam em prece e novamente lá estava Deus. Então, sim, haveria tempo para tudo, porque no tempo de Deus há tempo para tudo.

Sempre fui fascinada por cidades que recordam outros tempos a partir do momento em que pela primeira vez nelas se pisa: Rotemburgo, Pompeia, Siena, Toledo, Araxá, Paraty... Colonia Del Sacramento é também uma delas. Não sei, nesses lugares me sinto em casa, como se houvesse algo de mim perdido em um tempo distante. Em cidades que têm tal atmosfera essa certeza sempre me visita e em Colonia Del Sacramento não foi diferente. Saí com a sensação de ter estado mais uma vez, em alma, em casa.

domingo, 12 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Punta Del Este

“Entre agua y aire brilla/el puente curvo/entre verde y azul las curvaturas/de cemento, dos senos y dos simas/con la unidad desnuda/ de una mujer o una fortaleza/sostenida por letras de hormigón/que escribe en las páginas del río”. (Pablo Neruda – 1904-1973). “Entre água e ar brilha/a ponte curva/entre verde e azul as curvaturas/de cimento, dois seios e dois abismos/com a unidade nua/de uma mulher ou uma fortaleza/sustentada por letras de concreto/que escreve nas páginas do rio”. (tradução livre, 11/10/2014).

A cidade uruguaia de Punta del Este, em sua origem, foi uma antiga vila de pescadores chamada Ituzaingó, vocábulo guarani que significa “cascata abundante”. Tratava-se de um porto pesqueiro, sendo também comum a caça aos leões marinhos.

Em momentos anteriores foi possível relatar alguma animosidade envolvendo uruguaios e argentinos, como, de certo modo, é natural entre países vizinhos que protagonizaram disputas historicamente. No entanto, em algumas oportunidades, no que diz respeito a impulsionar a economia por meio do turismo, a participação Argentina foi e é importante no Uruguai, como, por exemplo, no início do século XX, quando se fundou Piriápolis, conforme já narrado. No caso de Punta del Este não foi diferente. Nos anos 40 do século passado, também a presença dos argentinos teve um papel relevante na consolidação desta cidade como importante polo turístico uruguaio.

Atualmente Punta del Este, o balneário mais famoso do Uruguai, que figura entre os dez mais luxuosos do mundo e tem praias tanto fluviais - graças ao Rio da Prata - como oceânicas - já que é ali na Punta de Salinas que começa o Oceano Atlântico -, recebe cerca de dois milhões de turistas por ano, sendo este o seguimento econômico mais forte no local, o que faz dela uma cidade cara, onde se pode chegar a gastar, por exemplo, três vezes mais para comer do que normalmente no restante do país, inclusive na capital, Montevidéu. Na maioria das vezes, certamente, os turistas estão preparados para suportar esses gastos e o atendimento os compensa louvavelmente; contudo, trata-se de um aspecto que não pode deixar de ser destacado. A alta temporada na cidade, claro, acontece no verão, mas sempre há alguém curioso para conhecer a Praia Mansa e a Praia Brava. Passeando, além dos altos edifícios na parte central, se podem observar as casas de veraneio, limpas e bem cuidadas por caseiros e outras pessoas responsáveis pelos trabalhos domésticos, o que ajuda a garantir emprego aos moradores locais durante o restante do ano. Essas casas e mansões de veraneio do tamanho de quarteirões têm nomes e a maior parte delas não possui muros ou cercas. Curiosamente, a mais cara pertence a um empresário brasileiro e é hermeticamente fechada, o que não deixa de refletir a preocupação com a segurança, que tanto nos atormenta aqui no Brasil. A construção civil, assim, é também um setor econômico em alta em Punta, além do turismo; um setor que alavanca não apenas essa cidade, mas também suas cidades-satélites, onde os trabalhadores que executam as construções vêm residir.

Um projeto arquitetônico que acabou por tornar-se um frequentado ponto turístico do lugar são as pontes de La Barra, criadas pelo engenheiro civil uruguaio Lionel Viera (1913-1975) e inauguradas em 1965. Seu acentuado formato ondular, descrito no poema que inicia este texto, produz nos passageiros dos veículos uma sensação semelhante à que se tem em um desses brinquedos de parque de diversões. Por uma das pontes ondulares se vai, pela outra, ainda mais ondulada, se volta, com igual sensação, na direção contrária. Me lembrei de meu irmão, Thiago. Quando éramos pequenos e viajávamos de carro com os nossos avós, sempre pedíamos para o vô passar rápido pelas lombadas, pra gente sentir aquele friozinho na barriga... Foi assim, mas um pouco mais intenso, nas pontes de La Barra, em que alguns passageiros do ônibus emitiram gritinhos prazerosos, enquanto outros soltaram exclamações mais assustadas; lembrança doce.

O monumento símbolo de Punta del Este, além, certamente, do farol, que já caiu três vezes mas agora vai bem, obrigada, é uma escultura localizada na Praia Brava e conhecida como “Los Dedos”. Foi uma obra esculpida em apenas seis dias, pelo artista chileno Mario Irarrázabal (1940), que concorria a um concurso e o venceu com essa escultura. Alguns dizem que aquela mão simboliza o homem emergindo para a vida; outros garantem que o monumento retoma a prudência que se deve ter diante do mar. O que é possível afirmar realmente é que não se pode pensar em Punta del Este sem recordar a imagem daquela grande mão esculpida brotando da areia. É uma pena que, infelizmente, como aqui, também haja pichadores no Uruguai, e esses “artistas às avessas” se tenham encarregado de pichar até mesmo a mão que simboliza a cidade... Dizer o quê? Nada; mudar de assunto é melhor.

A maior parte dos turistas ficou maravilhada pela visão do requintado cassino Conrad. Eu, por meu turno, prefiro a emoção de passar pelas pontes ou a mão brotando da areia, que faz a gente se sentir tão pequeno ali, em pé, diante dela, sentindo a dureza firme do concreto, ouvindo o vento e a vastidão do mar. A arte sempre me faz pensar em quanta singularidade cabe nesse nosso “Mundo mundo vasto mundo”, que Drummond há tempos assinalou. Essa é a lembrança mais suave, e ao mesmo tempo forte e imediata, que trago e vou sempre levar de Punta. Toda a opulência restante, deixo para que a admirem aqueles que têm olhos de ver, assim como deixo também um conselho que tem muito a ver com o “carpe diem” dos antigos romanos: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. (José Saramago - 1922-2010).

domingo, 5 de outubro de 2014

Recuerdos Del Paisito: Casa Pueblo


"O Sol é meu amigo mais antigo”. Assim se expressou o pintor, ceramista, muralista, escultor, compositor, escritor, arquiteto, produtor de cinema e empresário uruguaio Carlos Páez Vilaró (1923-2014). Difícil é apresentar tanta versatilidade em pouco espaço. Ir à península de Punta Ballena é, obrigatoriamente, mergulhar na obra do genial Vilaró. Punta Ballena é o berço da Casa Pueblo, um complexo que inclui um museu e uma galeria de arte com as obras do artista, um hotel, um restaurante e um café. E o que mais impressiona é saber que Vilaró construiu Casa Pueblo com as próprias mãos e a ajuda de pescadores e demais moradores dos arredores.

Conforme nos aproximávamos de ônibus, me lembro que minha avó e Carol olhavam pela janela, observando incrédulas materializar-se diante de seus olhos a concretude da península, essa porção de terra cercada de água por três dos lados que elas tanto tinham desenhado para os alunos no quadro-negro por mais de trinta anos, mas que nunca antes haviam visto fora dos livros. Foi emocionante vê-las fazendo essa descoberta ali, diante de mim.

Quando chegamos à Casa Pueblo fazia aquele típico friozinho uruguaio, mas o sol, símbolo do lugar, marcava presença. Casa Pueblo é conhecida mundialmente como uma “escultura habitável”, assim denominada por seu criador e construtor. Segundo o próprio Vilaró: "construi-a como se tratasse de uma escultura habitável, sem planejar antecipadamente, seguindo principalmente o meu entusiasmo. Quando o governo municipal me pediu, há pouco tempo, a planta do projeto - que eu não tinha - um amigo arquiteto teve que passar um mês estudando a maneira de decifrá-la”. O casarão branco de arredondados traços mediterrâneos abriga e expõe as obras do artista por todos os cantos e levou 35 anos para ser construído – o início data de 1958. Quando Casa Pueblo começou a tornar-se labiríntica, Vilaró decidiu espalhar por ela placas com os nomes dos amigos, como se de ruas se tratasse. Um desses amigos foi o nosso poetinha, Vinicius de Moraes (1913-1980). Foi inspirado em Casa Pueblo e para as filhas de Vilaró que Vinicius compôs os célebres versos: “Era uma casa muito engraçada”... Alguns outros desses amigos famosos eram simplesmente Jorge Amado (1912-2001), Pablo Picasso (1881-1973) e Salvador Dali (1904-1989).

Não se pode deixar de destacar, infelizmente, que o acesso de pessoas com deficiências, principalmente motoras, não é fácil, bem como o dos idosos, dada a proliferação de degraus e escadas dispostos de forma não regular e a inexistência de corrimãos propriamente ditos, exceto em alguns trechos de caminho. No entanto, se houver oportunidade e meios, trata-se de um passeio imperdível.

Na obra de Vilaró como um todo ressalta-se fortemente o cotidiano, primeiro, dos afro-uruguaios, com destaque para o candombe, manifestação musical uruguaia já tratada em uma crônica anterior. O artista aprofundou posteriormente seus estudos sobre a cultura africana no Brasil e em outros países latino-americanos com forte presença afro-descendente, tais como o Haiti, bem como em países da própria África subsaariana. Outras temáticas recorrentes em sua obra são o sol – claro -, a lua, as mulheres.

É certo que todo artista produz rodeado e influenciado por aquilo que vivencia. No caso de Vilaró, essa ligação vida-arte é bastante estreita e notória. Se o sol simboliza Casa Pueblo e é seu amigo mais antigo, a lua recorda e retoma outro episódio marcante de sua vida pessoal. Em 1972 um de seus filhos, Carlos Miguel, integrava um time uruguaio de rugby, os Old Christians. O avião da Força Aérea Uruguaia que transportava o time chocou-se contra uma montanha entre o Chile e a Argentina, na Cordilheira dos Andes. Dos 45 passageiros, 16 sobreviveram, numa inacreditável e, por que não, milagrosa luta pela vida. Um desses sobreviventes era o filho de Vilaró, que o artista nunca desistiu de procurar, mesmo com as autoridades colocando em xeque a existência de sobreviventes depois de mais de dois meses nos inóspitos Andes. Essa procura incansável foi transformada por Vilaró em Livro: Entre Meu Filho E Eu, A Lua. A tocante foto do reencontro dos dois, que ilustra a capa, já é um forte indício de tudo quanto o livro encerra.

Todos os dias ao entardecer os turistas são presenteados com um poema em prosa escrito por Vilaró e declamado por sua voz calma e comovida, com a beleza e suavidade tranquila de seu sotaque uruguaio, que reverbera pelos auto-falantes enquanto o sol se põe em Casa Pueblo. ( http://www.youtube.com/watch?v=HDdKf4a9zcg ) A essa cerimônia não assisti, mas a leitura reveladora do poema dá uma breve ideia do espetáculo que dia após dia se desenrolou diante dos sensíveis olhos do artista e que continua a oferecer-se voluntariamente aos frequentadores vespertinos da Casa Pueblo. Despeço-me de vocês hoje deixando, além da declamação do poema pelo próprio Vilaró no link acima, logo abaixo, o poema original em espanhol e, imediatamente após, uma tradução livre que fiz, para ver se conseguia administrar o impacto de ter sido apresentada ao sol pela agudeza terna e singela de Carlos Páez Vilaró. Divirtam-se, deleitem-se, meditem.:

"CEREMONIA DEL SOL

Hola Sol …! Otra vez sin anunciarte llegas a visitarnos. Otra vez en tu larga caminata desde el comienzo de la vida. Hola Sol…! Con tu panza cargada de oro hirviendo para repartirlo generoso por villas y caseríos, capillas campesinas, valles, bosques, ríos o pueblitos olvidados. Hola Sol…! Nadie ignora que perteneces a todos, pero que prefieres dar tu calor a los más necesitados, los que precisan de tu luz para iluminar sus casitas de chapa, los que reciben de tí la energía para afrontar el trabajo, los que piden a Dios que nunca les faltes, para enriquecer sus plantíos, y lograr sus cosechas. Es que vos, Sol, sos el pan dorado de la mesa de los pobres. Desde mis terrazas te veo llegar cada tarde como un aro de fuego rodando a través de los años, puntual, infaltable, animando mi filosofía desde el día que soñé con levantar Casapueblo y puse entre las rocas mi primer ladrillo. Recuerdo que era un día inflamado de tormenta, el mar había sustituido el azul por un color grisáceo empavonado, en el horizonte un velero escorado afinaba el rumbo para saltear la tempestad, el cielo se llenaba de graznidos de cuervos en huida, la sierra se peinaba con la ventolera alborotando a la comadreja y al conejo. Pero de golpe como un anuncio sobrenatural el cielo se perforó y apareciste vos. Eras un sol nítido y redondo, perfecto y delineado, puesto sobre el escenario de mi iniciación con la fuerza sagrada de un vitreaux de iglesia. Desde ese instante sentí que Dios habitaba en ti, que en tu fragua derretía la fe y que por medio de tus rayos la transmitía por todos los sitios donde transitabas. Los mismos brazos de oro que al desperezarte iluminan el cielo, al estirarse a los costados entibian las sierras, o apuntando hacia abajo laminan el mar. Hola Sol…! Cómo me gustaría haber compartido tu largo trayecto regalando luz, porque a tu paso acariciaste la vida de mil pueblos, compartiste sus alegrías y tristezas, conociste la guerra y la paz, impulsaste la oración y el trabajo, acompañaste la libertad e hiciste menos dura la oscuridad de los presidios. A tu paso sol, se adormecen los lagartos, despiertan los girasoles y los gallos cacarean. Se relamen los gatos vagabundos, los perros guitarrean, y el topo se encandila al salir de la cueva. A tu paso sol, hay sudor en la frente del obrero y en los cuerpos de las mujeres cobrizas que alcanzan el cántaro de la favela. Con tus latidos conmueves el mar, das música a la siembra, la usina y el mercado. A tu paso corrieron en estampida búfalos y antílopes, desperezó el león, se asombró la jirafa, se deslizó la serpiente y voló la mariposa. A tu paso cantó la calandria, despegó el aguilucho, despertó el murciélago y emigró el albatros. Hola Sol…! Gracias por volver a animar mi vida de artista. Porque hiciste menos sola mi soledad. Es que me he acostumbrado a tu compañía y si no te tengo, te busco por donde quiera que estés. Por eso te reencontré en la Polinesia, cuando te coronaron rey de los archipiélagos de nácar y los arrecifes dentellados de coral, o también en Africa, cuando dabas impulso a sus revoluciones libertarias y te reflejabas en el espejo de sus escudos tribales para inyectarles coraje. Te estoy mirando y veo que no has cambiado, que sos el mismo sol que reverenciaron los aztecas, el mismo de mi peregrinaje pintando por América, el que envolvió la Amazonia misteriosa y secreta, el que me alumbró los caminos al Machupichu sagrado del Perú, el de los valles patagónicos o los territorios del Sioux o del comanche. El mismo sol que me llevó a Borneo, Sumatra, Bali, las islas musicales o los quemantes arenales del Sahara. A diferencia del relámpago que apenas proyecta en la noche latigazos de luz, desde tu reinado planetario, tus destellos continúan activos, permanentes. Alguna vez la travesura de las nubes oculta tu esplendor, pero cuando ello ocurre, sabemos que estás ahí, jugando a las escondidas. Otras veces, en cambio, te vemos sonreír cuando las golondrinas o las gaviotas te usan de papel para escribir las frases de su vuelo. Gracias Sol, por invadir la intimidad de mi atardecer y zambullirte en mis aguas. Ahora serás la luz de los peces y su secreto universo submarino. También de los fantasmas que habitan en el vientre de los barcos hundidos en trágicos naufragios. Gracias Sol…! Por regalarnos esta ceremonia amarilla. Gracias por dejar mis paredes blancas impregnadas de tu fosforescencia. Entre ventoleras y borrascas, cruzando ciclones y tempestades, lluvias o tornados, pudiste llegar hasta aquí para irte silenciosamente frente a nuestros ojos. Porque tu misión es partir a iluminar otros sitios. Labradores, estibadores, pescadores te esperan en otras regiones donde la noche desaparecerá con tu llegada. Y como respondiendo a un timbre mágico despertarás las ciudades, irás junto a los niños a la escuela, pondrás en vuelo la felicidad de los pájaros, llamarás a misa. A tu llegada, se animará el andamio con sus obreros, cantarán los pregoneros en las ferias, la orilla del río se llenará de lavanderas y entrará la alegría por la banderola de los hospitales. Chau Sol…! Cuando en un instante te vayas del todo, morirá la tarde. La nostalgia se apoderará de mí y la oscuridad entrará en Casapueblo. La oscuridad, con su apetito insaciable penetrando por debajo de mis puertas, a través de las ventanas o por cuanta rendija encuentre para filtrarse en mi atelier, abriéndole cancha a las mariposas nocturnas. Chau Sol…! Te quiero mucho! Cuando era niño quería alcanzarte con mi barrilete. Ahora que soy viejo, sólo me resigno a saludarte mientras la tarde bosteza por tu boca de mimbre. Chau Sol…! Gracias por provocarnos una lágrima, al pensar que iluminaste también la vida de nuestros abuelos, de nuestros padres y la de todos los seres queridos que ya no están junto a nosotros, pero que te siguen disfrutando desde otra altura. Adiós Sol…! Mañana te espero otra vez. Casapueblo es tu casa, por eso todos la llaman la casa del sol. El sol de mi vida de artista. El sol de mi soledad. Es que me siento millonario en soles, que guardo en la alcancía del horizonte”.

(Carlos Páez Vilaró, Uruguai, 1923-2014)

“Cerimônia do Sol

Olá Sol! Outra vez sem anunciar-te chegas a visitar-nos. Outra vez em teu grande passeio desde o começo da vida. Olá Sol! Com teu ventre carregado de ouro fervente para reparti-lo generoso por vilas e casarios, capelas campesinas, vales, bosques, rios ou cidadezinhas esquecidas. Olá Sol! Ninguém ignora que pertences a todos, mas que preferes dar teu calor aos mais necessitados, os que precisam de tua luz para iluminar suas casinhas de lata, os que recebem de ti a energia para enfrentar o trabalho, os que pedem a Deus que nunca lhes faltes, para enriquecer seus plantios e propiciar suas colheitas. Porque tu, Sol, és o pão dourado da mesa dos pobres. De meus terraços te vejo chegar a cada tarde como um aro de fogo rodando através dos anos, pontual, infalível, animando minha filosofia desde o dia em que sonhei levantar Casa Pueblo e pus entre as rochas meu primeiro tijolo. Lembro-me que era um dia inflamado de tormenta, o mar havia substituído o azul por uma cor acinzentada apavorante, no horizonte um veleiro ancorado preparava-se para saltar a tempestade, o céu se enchia de grasnidos de corvos em fuga, a cerra se penteava com o vendaval alvoroçando a doninha e o coelho. Mas de golpe como um anúncio sobrenatural o céu se perfurou e tu apareceste. Eras um sol nítido e redondo, perfeito e delineado, posto sobre o cenário de minha iniciação com a força sagrada de um vitral de igreja. Desde esse instante senti que Deus habitava em ti, que em tua forja derretia a fé e que por meio de teus raios a transmitia por todos os lugares por onde transitavas. Os mesmos braços de ouro que ao espreguiçar-te iluminam o céu, ao estirar-se às costas entibiam as cerras, ou apontando para baixo laminam o mar. Olá Sol! Como eu gostaria de haver comnpartilhado teu grande trajeto presenteando luz, porque por onde passaste acariciaste a vida de mil povos, compartilhaste suas alegrias e tristezas, conheceste a guerra e a paz, impulsionaste a oração e o trabalho, acompanhaste a liberdade e fizeste menos dura a obscuridade dos presídios; por onde passas Sol, adormecem os lagartos, despertam os girassóis e os galos cacarejam; se lambem os gatos vagabundos, os cachorros latem e a toupeira se deslumbra ao sair da toca. Por onde passas Sol, há suor na testa do operário e nos corpos das mulheres acobreadas que agarram o cântaro da favela. Com teu pulsar comoves o mar, dás vida à semeadura, à usina e ao mercado. Por onde passaste correram precipitadamente búfalos e antílopes, espreguiçou-se o leão, assombrou-se a girafa, deslizou a serpente e voou a mariposa. Por onde passaste cantou a cotovia, decolou a aguiazinha, despertou o morcego e emigrou o albatroz. Olá Sol! Obrigado por voltar a animar minha vida de artista. Porque fizeste menos solitária minha solidão. É que me acostumei à tua companhia e se não te tenho, te busco por onde quer que estejas. Por isso te reencontrei na Polinésia, quando te coroaram rei dos arquipélagos de nácar e dos arrecifes denteados de coral, ou na África, quando davas impulso a suas revoluções libertárias e te refletias no espelho de seus escudos tribais para injetar-lhes coragem. Te estou olhando e vejo que não mudaste, que és o mesmo sol que reverenciaram os astecas, o mesmo de minha peregrinação pintando pela América, o que envolveu a Amazônia misteriosa e secreta, o que me iluminou os caminhos ao Machupichu sagrado do Peru, aos vales patagônicos ou os territórios do Sioux ou do Comanche. O mesmo sol que me levou a Bornéu, Sumatra, Bali, às ilhas musicais ou aos areais queimantes do Saara. Diferente do relâmpago que apenas projeta na noite chicotadas de luz, de teu reinado planetário, teu resplendor continua ativo, permanente. Às vezes alguma travessura das nuvens oculta teu esplendor, mas quando isso ocorre, sabemos que estás aí, brincando às escondidas. Outras vezes, no entanto, te vemos sorrir quando as andorinhas ou as gaivotas te usam de papel para escrever as frases de seu voo. Obrigado, Sol, por invadir a intimidade de meu entardecer e mergulhar-te em minhas águas. Agora serás a luz dos peixes e de seu secreto universo submarino. Também dos fantasmas que habitam o ventre dos barcos afundados em trágicos naufrágios. Obrigado Sol! Por presentearnos com esta cerimônia amarela. Por deixar minhas paredes brancas impregnadas de tua fosforescência. Entre vendavais e borrascas, cruzando ciclones e tempestades, chuvas ou tornados, pudeste chegar até aqui para ir-te silenciosamente diante de nossos olhos. Porque tua missão é partir a iluminar outros lugares. Lavradores, estivadores, pescadores te esperam em outras regiões onde a noite desaparecerá com tua chegada. E como respondendo a um timbre mágico despertarás as cidades, irás junto aos meninos à escola, porás em voo a felicidade dos pássaros, chamarás para a missa. À tua chegada se animará o andaime com seus operários, cantarão os pregoeiros nas feiras, a margem do rio se encherá de lavadeiras e entrará a alegria pela bandeirola dos hospitais. Tchau Sol! Quando em um instante te fores de todo, morrerá a tarde. A nostalgia se apoderará de mim e a obscuridade entrará na Casa Pueblo. A obscuridade, com seu apetite insaciável penetrando por debaixo de minhas portas, através das janelas ou por quantas aberturas encontre para filtrar-se em meu atelier, dando passagem às mariposas noturnas. Tchau Sol! Te amo muito! Quando eu era menino, queria alcançar-te com o meu barrilete. Agora que sou velho, só resigno-me a saudar-te, enquanto a tarde boceja por tua boca de vime. Tchau Sol! Obrigado por provocar-nos uma lágrima, ao pensar que iluminaste também a vida de nossos avós, de nossos pais e a de todos os seres queridos que já não estão junto a nós, mas que te seguem desfrutando de outra altura. Adeus Sol! Amanhã te espero outra vez. Casa Pueblo é a tua casa, por isso todos a chamam casa do sol. O sol de minha vida de artista. O sol de minha solidão. É que me sinto milionário de sóis, que guardo no cofre do horizonte”.

(tradução livre, 02/10/2014)