domingo, 13 de setembro de 2015

O Submundo Da Torre Eifel

Diante de toda a desumana indignidade com a qual venho percebendo que estão sendo tratados os refugiados, predominantemente sírios, em sua busca desesperada por uma vida melhor no Velho Continente – que, com poucas ressalvas, parece querer ignorar sumariamente as dívidas históricas que um dia contraiu sem perguntar com quem -, republico hoje (13/09/15) esta crônica que escrevi faz alguns anos, quando pela primeira vez tive contato, ainda que superficial, com o drama dos refugiados que buscam a Europa. Reflitamos um pouco mais.

Nas últimas semanas, enlevada ainda por tudo de lindo que vi durante o tempo em que estive na Europa até mais ou menos quinze dias atrás, tenho escrito crônicas contando episódios que, literalmente, me maravilharam.

Porém, contrariamente àquilo que muitas vezes se imagina, vi, no Velho Continente, tão velho quanto a América que nós mesmos desconhecemos, muitos problemas que, a julgar pela imagem que se tem dos países mais abastados, seriam, erroneamente, problemas exclusivos dos países a que se denomina “em desenvolvimento”.

Quando eu ainda cursava o Ensino Médio, há nem tantos anos assim, a União Européia começava a dar fortes mostras de consolidação, que se expandiram com o passar do tempo. O que ouvíamos e líamos então era que, depois de um período de adaptação difícil dos países mais pobres do bloco às novas condições de integração econômica e social, haveria um equilíbrio bastante satisfatório. Porém, não foi isso o que constatei, passado mais ou menos um decênio, na maioria dos países que visitei: Portugal, a Espanha, a França e a Itália me puseram problemas bem brasileiros diante dos olhos – dois países mais pobres e dois mais abastados: mendicância, desemprego, venda de mercadorias piratas, salários-mínimos insuficientes, acampamentos miseráveis onde imigrantes ciganos levam vidas muito similares aquelas que costumamos ver retratadas nas nossas praças, viadutos e jornais. A diferença é que o uso de armas, brancas ou de fogo, ainda não acompanha as ações e reações desses deserdados do desenvolvimento; seu trunfo é a hagilidade coletiva, principalmente das crianças menores de idade, que, como aqui, serão presas por pouco tempo e logo estarão novamente nas ruas praticando o delito – único trabalho que conhecem. Não estou sendo sentimental, ao contrário do que se possa pensar. Segundo os nossos guias, elas chamam mesmo isso de trabalho, assim como os ciganos em geral, e este é sim o único “trabalho” que lhes cabe, e que nós, turistas e guias turísticos, tentamos evitar que ocorra a todo custo, afinal de contas, ninguém em sã consciência vai deixar-se roubar, não é?

Espanhóis e portugueses me atestaram com igual lamento as desastrosas conseqüências da adoção do Euro nessas realidades econômicas. Lá, como aqui, todos esses fragmentos cotidianos e depoimentos penalizam. Mas o episódio que me leva a escrever esta crônica foi um episódio que vivi na opulência iluminada da Torre Eifel.

O que mais chamava a atenção dos turistas que podiam olhar era como aquela construção é majestosa, grandiosa, como grandicíssima parte dos monumentos na França. O jogo de luzes que à noite torna a torre dourada, camuflando sua verdadeira coloração marrom diurna, parecia hipnotizà-los. Mas para mim, que via de outra maneira e achava tudo aquilo muito monótono, o que atraiu minha atenção foi a realidade circundante: imigrantes africanos, bastante altos, numerosos e extremamente simpáticos nos cercavam, apresentando mercadorias ilegais, que gerariam multas altíssimas, para eles e para nós, se a polícia aparecesse. Já havíamos sido alertados da presença deles e das potenciais conseqüências dessas compras se houvesse flagrante, mas chegar e estar de repente no meio deles nos faz sentir na 25 de Março. Os franceses, de modo geral, comunicam-se apenas em francês, falando inglês bem poucas vezes e nem sempre com fisionomias receptivas, ao menos pelo que presenciei; aqueles imigrantes, pelo contrário, falavam uma espécie de espanhol misturada com português, arranhada com os “erres” pronunciadíssimos do francês. Conheciam Pelé, o presidente Lula, sorriam e queriam nos fazer sentir em casa. E falariam outras línguas, se outros fossem os turistas a chegar para ver a torre e os outros monumentos. A presença deles era recorrente. Precisavam desesperadamente vender, mas nos tratavam com tanta hospitalidade para issso... Quem sabe, a hospitalidade que eles mesmos não receberam do país que os colonizou. Vejam-se as expulsões de ciganos da Romênia e Bulgária, acampados em território francês, que temos acompanhado há mais de um mês, e cujos acampamentos eu mesma vi à entrada de Paris, isso para não mencionar a proibição de símbolos religiosos em lugares públicos.

Não escrevo como quem se acha dona da verdade, só relato o que vi. Mas a única imagem que temos aqui antes de chegar a Paris é a de cidade-luz. E aqueles que regressam nunca falam sobre a França que se esconde nos porões da própria França; nunca contam sobre a Europa que se esconde nos porões da própria Europa.

Ter podido estar naqueles países foi a realização de um sonho acalentado há muito tempo. Para quem respira literatura, como eu, é indescritível poder estar no lugar a que se convencionou chamar de “o berço da Civilização Ocidental”. Mas hoje, gostaria de dividir com vocês esse outro lado. Não estou querendo dizer que não se deva ir a Europa. Eu mesma, se pudesse, voltaria, ainda há tantas coisas que não pude ver... Só gostaria de convidá-los a visitar a Europa, ou observar a Europa, lembrando que esta moeda também tem dois lados. Enfim, só queria dizer que viajar pela Europa e por dentro doBrasil são igualmente passíveis de revelar sublimidades que jamais imaginamos e indignidades das quais nem desconfiamos. Ou seja, em nenhum dos dois lados há unanimidades absolutas. Baudelaire costumava dizer que o homem contemporâneo precisaria aprender a “abrir alas à beleza da feiúra”. Depois dessa viagem, terminei de constatar que ainda precisamos ir um pouco além e abrir alas também à feiúra da beleza.


Limeira, quarta-feira, 29 de setembro de 2010.

[Texto publicado originalmente no blog jornalistas.blog.br, em 01/10/2010].

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Através Das Janelas Do Mundo



Desde criança sempre tive, por natureza, um carinho todo especial pelos estrangeiros. Logo que os ouvia falar línguas distintas da minha, eu já tinha a atenção atraída para eles, fossem de onde fossem, fosse qual fosse o idioma que falassem. Ouvi-los contar os costumes de seus países, suas recordações, suas experiências de vida sempre foi para mim motivo de júbilo atento; sempre foi para mim oportunidade escancarada de aprender alguma coisa nova. Toda vez que ouço um estrangeiro falar é como se, de par em par, devagarinho, ele me fosse abrindo uma janela do mundo...

Comecei a me dar conta desse fascínio quando, com uns dez anos, estudava em uma escola que recebeu três crianças que viviam em um circo que tinha chegado à nossa cidade; três brasileirinhos, mas que sabiam falar espanhol. Tinham dificuldades em várias disciplinas, acho que em grande medida devidas ao fato de passarem uma semana, dez dias em uma escola e logo já precisarem levantar acampamento e partir de novo. Mas falavam espanhol, principalmente o menino: baixinho, franzino, dono de uma vozinha aguda com sotaque de paulistano da Mooca, mas falava espanhol... Me recordo que a professora nos deixou fazer-lhes perguntas, todas as que quiséssemos e que eles quisessem responder, e eu só queria saber em que momento o Luís Antônio falaria alguma coisa em espanhol; esse era o nome dele. E acabou falando mesmo.

Depois disso eu tive amigos estrangeiros, professores estrangeiros, inclusive alguns desses mestres se tornaram grandes amigos. O marido da professora brasileira de italiano contava, alegre, como era a infância fria mas saudosa em Trento; meu professor bavarês de alemão contava, aterrado, do medo imenso que tinha do papai-noel; o professor chileno de espanhol descrevia, pensativo, as paisagens dos Andes; o professor britânico de inglês relatava, satisfeito, a rigidez benéfica das escolas de sua infância; a professora irlandesa de inglês dizia, irritada, como detestava as aulas de sapateado irlandês que a mãe a obrigava a fazer; a professora uruguaia de espanhol ainda hoje me fala, com ternura, das brincadeiras na escola e no casarão antigo da avó. Isso para ficar apenas no tema infância.

Além do mais, acho que viajar é o maior e melhor investimento que uma pessoa pode fazer em toda sua vida. Ficar impregnado do chão, dos ruídos, dos cheiros, das vozes, da aura de outros lugares do mundo que não o país onde a gente nasceu é uma dádiva que não tem preço e que não nos pode ser tirada jamais.

Tudo isso para encontrar um meio de dizer que hoje estou dilacerada. Dilacerada pela impotência. Dilacerada pela imagem do mmenino sírio de três anos morto afogado, com o rosto sufocado sobre a areia de uma praia na Turquia, que correu mundo nessses últimos dois dias. Dilacerada por pensar nesse pai que, torturado em Kobane pelo Isis, que não é estado e jamais soube o que é ser islâmico, tentou fugir com a família para o Canadá, para ficar junto do irmão, e teve o pedido de asilo negado; esse pai que pagou por duas vezes quantias absurdas para fazer com os atravessadores desumanos e inescrupulosos que traficam pessoas essa infausta rota do Mediterrâneo e foi boicotado; esse pai que conseguiu viajar com a mulher e dois filhos pequenos, finalmente, mas que viu sua vida despedaçada quando o atravessador pulou do barco na Turquia e os abandonou à própria sorte, ou antes, à própria falta de sorte. O barco virou; a mulher e os filhos lhe escaparam por entre os dedos a pouco mais de quarenta quilômetros da fronteira com a Grécia; apenas ele sobreviveu. Sobreviveu ao Isis para ter a família fria e grosseiramente abalroada por esses verdadeiros cemitérios submarinos que estão se tornando o Mediterrâneo, o Egeu, apenas duas das tantas rotas pelas quais esses imigrantes tentam desesperadamente escapulir à procura de um pouco de paz... Sírios, afegãos, etíopes, eritreus, haitianos, bolivianos e tantos outros para os quais o mundo parece não se importar em fechar os olhos. Agora o Canadá oferece a este pai abrigo; agora que seu único desejo é voltar à torturada e torturante Síria, para enterrar a própria família. E essa é apenas uma das grandes tragédias humanas do nosso tempo que chegam ao nosso conhecimento.

Pode parecer exagero, mas escrevo para não explodir, para não sufocar em aflição. O que estamos fazendo? Sim, estamos, os que estão perto e os que estão longe desse êxodo forçado, porque calar e omitir-se também é compactuar, também é ser cúmplice. Estamos multando, pondo grades nas janelas de trens, proibindo-os de circular, fazendo devoluções como se de mercadoria indesejada se tratasse, expremendo gente sobre gente em caminhões, vans, porões de barcos, até à literal asfixia; estamos construindo muros e cercas, estamos nos escondendo atrás da desculpa do “roubo” dos empregos... Ah, também tem aquela da ameaça islâmica à tradição cristã... Ora, façam-me o favor! Será que é tão difícil lembrar que somos todos humanos, de carne, osso e sangue? Que todos sentimos, que todos desejamos, que todos buscamos, que cada um de nós recebeu, do Deus em que acredita, se é que acredita, o privilégio de existir?

Pelo amor de Deus! Se cada estrangeiro é uma janela do mundo que se abre, o que estamos fazendo? Estilhaçando a pedradas inclementes uma por uma dessas janelas todas? Quando encontrei os primeiros refugiados africanos de que tive conhecimento, certa vez, em uma excursão, quando os vi vendendo lembranças na informalidade e correndo com as mercadorias às costas e a polícia em seus calcanhares, não pude e nem soube supor que eram apenas o começo dessa onda insana de indignidade que assola o mundo. Tantas coisas eu espreitei por aquelas janelinhas do mundo que eram esses negros altos, com jeitão todos de maratonistas quenianos, que muitas vezes me trataram melhor do que os moradores “originais” que conheci em alguns lugares... Espreitei tantas coisas, pensei que tinha visto tanto e vi em realidade tão pouco.

Já faz tempo que essa indiferença com a vida vem me incomodando, dia a dia, na tv, redes sociais etc., mas hoje esse incômodo beira as raias do desespero. Há pouco vi uma jornalista conclamando que cada um, onde estivesse, dentro de sua profissão, fizesse o que pudesse para pressionar o mundo por atitudes mais humanas e mais efetivas. Minha profissão são as palavras; minha vida são as palavras! Brasileiras e estrangeiras; todas as palavras. Então, humildemente, escrevo.

Escrevo e aproveito para agradecer: seu Lívio (in memoriam), Alejandro, Jose, Manuel, Paco, Pedro, Mario, Lucas, Luis, aos Antonios, Jesús, às Carmens que já conheci, Fernando, Liliana, Paloma, Monika, Axel, Steve, Emma, Veit, Elisa, Alicia, Reyes, Helena, Alexandra, Cristina, Raul, Beatriz, Sara, Ruben, Susana, Ana, Javier, Enrico... A todos vocês e a todos os estrangeiros, nomeados ou não aqui, que me abriram e abrirão um dia as janelas do mundo, porque jamais me cansarei de espreitar entre elas, obrigada por tudo, obrigada por tanto! Obrigada por me terem ensinado, acima de tudo, a ser mais gente!... Jamais os esquecerei por isso.