sexta-feira, 16 de junho de 2017

Pelos Olhos

“Onde o interior e o exterior se tocam, ali se encontra o centro da alma”. (Novalis).


Desde bem pequena até o início da juventude fui várias vezes à praia: Eram Excursões com toda a família; saíamos de madrugada nos finais de ano, como muitas famílias ainda hoje fazem, alguns dias depois do natal. Já no litoral, quem me acompanhava à água era meu avô: sempre gostei mais da água do que da areia. Nadávamos, brincávamos, ele sempre me ensinou a não temer as ondas, a ficar muito atenta a seus sons, para aprender a distinguir assim os tamanhos que tinham e a pular no momento exato em que elas me atingiriam: de costas, de frente... Me ensinou a boiar sobre elas, a me agachar no mar raso e deixar que me levassem até a praia... Mas nunca tive registro visual de nenhuma imagem dessas, só tátil, auditivo.

O tempo foi passando e fui retendo assim esses momentos com o mar e a praia, pelos cheiros, sons, texturas. Até um pouco depois dos vinte anos eu ainda tinha vontade de ver com os olhos, confiava que a medicina me traria brevemente isso, que eu ainda teria muito tempo para aprender tudo de novo, que poderia finalmente conhecer visualmente tantas das imagens que quase todos que me acompanhavam pela vida já tinham visto, inclusive as imagens do mar.

A música clássica foi outra coisa que me acompanhou desde sempre, mas eu ouvia as peças sem a preocupação de quem eram os autores, depois, devagar, os ia descobrindo, associando uma coisa com outra. E assim, certo dia, sentada na sala de minha antiga casa, já na época da faculdade, ouvi o segundo movimento do Concerto número 2 de Chopin pela primeira vez, mas não sabia que era Chopin. Quem tocava ao piano era Arthur Moreira Lima. Fui ouvindo os primeiros acordes das cordas da orquestra, a suavidade da flauta acompanhada por outros sopros, depois entrou o piano com firme suavidade e comecei a pensar que aquela melodia poderia bem ser o fundo musical apropriado para alguém que aprecia visualmente o mar pela primeira vez, como eu pretendia ainda poder fazer um dia. Fui ouvindo aqueles sons cristalinos que subiam e desciam lentamente e escutando as ondas chegando mansamente à praia num dia ensolarado, as aves marinhas que eu veria, quem sabe; e quando vieram os momentos de sons mais graves, fortes, cheios de oitavas, eu me imaginei vendo ondas arrebentando implacáveis, indo e voltando furiosas de encontro às pedras. Talvez já não houvesse mais sol; Eu lá, só olhando, nem aí... E quando o movimento retornou novamente ao tema, calmo, cristalino, líquido, me imaginei descalça andando na areia molhada ao longo da praia, sentindo o mar ir e vir sobre os meus pés, enquanto ainda observava. Depois desse dia, sempre que voltava a ouvir esse movimento, essas imagens me vinham à mente; e os anos continuaram passando.

Hoje já tenho outras ideias, a obstinação por imagens visuais não me persegue mais e há muito eu não ouvia esse movimento do concerto 2 de Chopin. Até que há quase uma semana o ouvi de novo. Só nesse dia descobri que era Chopin o seu compositor, o mesmo do meu noturno preferido. Quanto mais eu ouvia, mais a música se humanizava, vertida pelos dedos Hágeis da pianista. Sentada no teatro ouvi tocar novamente os primeiros acordes e uma sensação estranha me assaltou: uma mistura das lembranças da praia da infância e das imagens visuais que minha mente havia criado ao ouvir esse movimento pela primeira vez. Eu estava ali, sentada, sabia que a pianista tocava também ali com a orquestra e o regente, mas minha mente vagava pela infância de brincadeiras e pelo início da juventude, revivendo o impacto que, eu imaginava, aquelas imagens marinhas teriam quando eu as contemplasse com os olhos pela primeira vez. E eis que, de repente, percebi que as lembranças das brincadeiras com meu avô nas praias e as imagens que eu posteriormente criara se me escapavam, literalmente, pelos olhos inundados, numa fuga impossível de conter... Deixei que a música me invadisse por completo e permiti, ainda, que aquele pranto envergonhado da presença de plateia, mas também aliviado e silencioso cumprisse seu papel: reviver a infância e ao mesmo tempo fazer sepultar as imagens que nunca vieram e também agora já não são mais esperadas.

Para completar a noite, depois estive com a pianista, Sônia Goullart, por sinal talentosíssima, e vi que suas mãos eram, para mim, espantosamente pequenas. Reouvi mentalmente O segundo movimento do concerto e uma vez mais ele se humanizava, porque agora eu sabia como eram as mãos que em parte o haviam brilhantemente executado ali, diante de mim.

Saí do concerto de alma e cara lavadas, porque naquele momento eu soube que agora estou apaziguada com relação às imagens visuais, embora de vez em quando ainda alguma tristeza pela privação total de todas elas me visite; que não vou ver o mar em um dia ensolarado, mas que isso, afinal de contas, não é tão necessário. Tenho uma amiga, Elisa, que estava comigo nesse dia e sempre diz que a arte cura; e hoje sei, por experiência própria, que ela tem razão: a arte, realmente, cura!